domingo, 5 de julho de 2009

Saber e modéstia de Orígenes

O juízo cheio de inteligência e de justeza pronunciado por Pânfilo de Cesareia, em sua Apologia de Orígenes, sobre o pensamento e o método deste:

Nós, porém verificamos frequentemente que ele fala com grande temor de Deus e com toda a humildade, quando se desculpa por expor o que lhe vem à mente, em discussões muito, exasperadas e pelo abundante exame das Escrituras; em sua exposição, costuma com frequência acrescentar e confessar que não dá opinião definitiva, nem exprime uma doutrina estabelecida, mas pesquisa na medida de suas forças; que discute o sentido das Escrituras e não pretende tê-lo compreendido de maneira integral nem perfeita; diz que sobre muitos pontos tem, antes, um pressentimento, mas não está seguro de ter atingido em todas as coisas a perfeição, nem a solução integral. Nós o vemos, às vezes, reconhecer que hesita em muitos pontos a respeito dos quais levanta as questões que lhe vem à mente; não lhes dá solução, mas, com toda a humildade e verdade, não se envergonha de confessar que nem tudo está claro para ele. Frequentemente o vemos inserir em seus discursos palavras que, hoje, mesmo os mais ignorantes de seus difamadores não se dignariam pronunciar, isto é, se alguém fala ou se exprime a respeito desses assuntos melhor do que ele, é preferível escutar este último. além disso, às vezes o vemos dar explicações diferentes sobre um mesmo assunto; e com toda a reverência, como alguém que sabe que está falando das Sagradas escrituras, depois de expor muitos pensamentos que lhe vieram à mente, pede aos que o lêem que verifiquem cada uma de suas afirmações e conservem o que o leitor prudente julgar mais justo; seguramente porque todas as questões que ele levantara e discutira não deviam ser consideradas dignas de aprovação e definitivamente irrevogáveis, uma vez que, segundo nossa fé, há nas Escrituras muitas coisas misteriosas e ocultas em seu recôndito. Se observarmos, com maior atenção, com que sinceridade e SENSO CATÓLICO ele se manifesta a respeito de todos os seus escritos, no prefácio dos livros que redigiu sobre o Gênesis, conheceremos facilmente, a partir desse texto, todo o seu pensamento.

Apologia de orígenes, Prefácio. a partir da tradução de H. crouzel, Origène, Paris, 1985, pp. 317-318.

Esta página de Pânfilo refuta antecipadamente as acusações feitas posteriormente contra Orígenes.

CARTA DE ORÍGENES A GREGÓRIO TAUMATURGO

Conselhos de um mestre a um discípulo


Tuas disposições naturais podem, assim, fazer de ti um jurista romano perfeito e um filósofo grego pertencente a uma das escolas renomadas. Mas eu, por mim mesmo, gostaria que utilizasses toda a tua força de tuas disposições naturais tendo por fim a doutrina cristã. Quanto ao meio a empregar, desejaria, por esse motivo, que tirasses da filosofia grega tudo o que pode servir como ensinamento encíclico ou propedêutico de introdução ao cristianismo; e igualmente da geometria e da astronomia, tudo o que for útil à interpretação da Sagrada Escritura. E assim, o que dizem os filósofos da geometria e da música, da gramática, da retórica e da astronomia, chamando-as auxiliares da filosofia, nós o aplicaremos, de nosso lado, à própria filosofia com relação ao cristianismo...

Tu, pois, meu senhor e filho, aplica-te principalmente à leitura das divinas Escrituras; aplica-te bem a isso, porque necessitamos de muita aplicação quando lemos os livros divinos, para não pronunciar alguma palavra ou ter algum pensamento excessivamente temerário a respeito deles. Aplicando-te a lê-los com a intenção de crer e de agradar a Deus, bate, na tua leitura, à porta do que está fechado, e ele te abrirá - o porteiro de quem Jesus disse: "Àquele o porteiro abre". aplicando-te a essa divina leitura, procura, com retidão e confiança inabalável em Deus, o sentido dos divinos escritos, oculto a muitos. Não te contentes em bater e em procurar, pois é absolutamente necessário orar para compreender as coisas divinas. Foi para nos exortar a isso que o Salvador não disse apenas: "Batei e abrir-se-vos-á" e "Buscai e achareis", mas também: "Pedi e vos será dado". Ousei falar assim por causa do meu amor paternal por ti. Se é bom, ou não, tê-lo ousado, só Deus pode saber, e seu Cristo, e aquele que participa do Espírito de Deus e do Espírito de Cristo.

A partir da tradução de Sources Chrétiennes, n. 148,pp.187-195

O ensino de Orígenes em Alexandria

Quando viu que ele sozinho não bastava para o estudo aprofundado, a pesquisa e a explicação das letras sagradas, e ainda a catequese dos que procuravam e não lhe permitiam nem mesmo respirar, porque, uns após outros, frequentavam sua escola da aurora até à noite, dividiu o grande número de pessoas e, entre seus discípulos, escolheu Héracles, zeloso nas coisas divinas e, aliás, homem muito discreto e a quem não faltava a filosofia. Entregou ao colega a catequese, confiando-lhe a primeira iniciação dos que acabavam de começar, reservando para si a instrução dos mais adiantados.

E enquanto o renome de Orígenes era celebrado por toda a parte, muitas pessoas instruídas o procuravam para fazer junto desse homem a experiência da aptidão nas doutrinas sagradas. Milhares de hereges e um grande número de filósofos juntavam-se à ele com zelo para dele aprender - podemos quase afirmar - não apenas as coisas divinas, mas também as da filosofia profana.

Na verdade, todos os que ele julgava naturalmente bem dotados eram introduzidos nas disciplinas filosóficas, na geometria, na aritmética e nos outros ensinamentos preparatórios; depois, ele lhes dava a conhecer as seitas existentes entre os filósofos e lhes explicava os escritos destes, comentava-os e examinava-os pormenorizadamente, de modo que entre os próprios gregos esse homem era proclamado um grande filósofo.

Ele conduzia os menos dotados, em grande número, aos estudos cíclicos (ciclo dos estudos clássicos), cuja utilidade não seria pequena, em sua opinião, em vista do conhecimento e da preparação às Escrituras divinas. Assim, julgava inteiramente necessário, mesmo para si próprio, exercitar-se nas disciplinas profanas e na filosofia...

As testemunhas de seus sucessos nessas matérias são os próprios filósofos gregos que brilharam no seu tempo, e em cujas obras encontramos inúmeras referências a esse homem; a ele dedicam seus próprios escritos e apresentam trabalhos pessoais ao seu julgamento, como a de um mestre.

Eusébio de Cesaréia, História eclesiástica, VI, 15; 18-19.

Vida do insinge padre Orígenes de Alexandria

Nascido por volta de 185 em uma família profundamente cristã, Orígenes esteve, desde a juventude, no ambiente de perseguição da Igreja pelo poder, no tempo de Sétimo Severo. Seu pai morreu mártir em 202 mais ou menos, e é provavelmente o exíio forçado do clero de Alexandria que explica o fato de, pouco tempo depois, aos 18 anos, ele ter sido encarregado pelo bispo Demétrio da formação dos catecúmenos.

Assume suas funções não apenas com seriedade, mas com exagero dramático, vendendo seus livros profanos e impondo-se uma vida extraordianriamente mortificada, chegando à castração voluntária: fato estranho, mas por demais conhecido e criticado, para que seus admiradores mais entusiastas pudessem tê-lo negado.

Fazem parte do seu auditório pessoas intelectualmente exigentes e mesmo pagãos e adeptos de seitas atraídos por seu renome. Esse novo público o convence da necessidade de se orientar para um estudo sistemático e rigoroso da Escritura, e para uma reflexão teológica aprofundada. Daí data sua opção definitiva pela pesquisa e ensinamento científico, apoiados nas disciplinas profanas. Inaugura assim, um profundo ensinamento cristão, fazendo seus alunos passar pelo ciclo dos estudos clássicos para chegar ao estudo da Bíblia e da doutrina. ele mesmo é levado a iniciar-se em filosofia; recebe, talvez, as lições de Amônio Sakkas, pouco mais tarde mestre de Plotino e considerado iniciador do neoplatonismo. Isso é de primordial importância para a história do pensamento patrístico: a influência da tradição platônica se torna, com Orígenes, não exclusiva, longe disso, mas predominante em relação às outras correntes filosóficas, em muitos dos padres. Na história geral da filosofia, Orígenes é testemunha da passagem do "médio platonismo" ao neoplatonismo. No entanto, não conheceu Plotino, 20 anos mais jovem que ele.

O incêndio da perseguição crescia nesse momento, e milhares de fiéis haviam cingido a coroa do martírio; uma tal paixão pelo martírio se apoderou da alma de Orígenes, ainda muito criança, que ele se encheu de coragem para se expor aos perigos, saltar e correr para a luta.

Pouco faltou, já nesse momento, para que estivesse bem próximo o fim de sua vida, mas a divina e celeste Providência, tendo em vista o proveito de muitos, colocou-lhe obstáculos à coragem, por intermédio de sua mãe. Pois ela suplicou, primeiro com palavras, exortando-o a ter compaixão dos sentimentos maternos quen tinha por ele; no entanto, vendo-o agitar-se com mais vigor, quando ele, tendo sabido da captura e da prisão do pai, fora inteiramente tomado pelo desejo do martírio, escondeu todas as suas roupas obrigando-o assim a ficar em casa. Mas, como ele já não podia fazer nada e seu desejo crescia acima de sua idade, não lhe permitindo ficar inativo, enviou ao pai uma carta cheia de exortações a respeito do martírio, na qual ele o animava, diendo textualmente: "Preserva-te de mudar de opinião por nossa causa". Que isso seja anotado por escrito, como a primeira prova da vivacidade de espírito de Orígenes criança e de suas inclinações bem evidentes pela religião.

na verdade, ele já lançara fundamentos sólidos nos conhecimentos da fé, exercitando-se desde à infância nas divinas Escrituras; aplicara-se a isso laboriosamente e não em medida comum, pois o pai, não contente em fazê-lo passar pelo ciclo dos estudos, não havia considerado acessória a preocupação pelas Escrituras. Portanto, acima de tudo, antes que se dedicasse às disciplinas helênicas, incitara-o a realizar estudos sagrados, exigindo dele, todos os dias, recitações e relatórios...

Quanto a ele, extremamente satisfeito, dava as maiores graças a Deus, causa de todos os bens, por se ter dignado fazer dele o pai de tal filho. Dizem que parava, então, com freqüência, junto do filho adormecido e, descobrindo-lhe o peito, como se um espírito divino lhe habitasse o interior, beijava-o com respeito, julgando-se feliz pela posteridade que tinha.

FONTE:
Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, VI, 2;3-11
A partir da tradução de Sources Chrétiennes, n. 41,pp. 83-85.